Entrevista com Mike “Cheese” Apokalypse (Gehenna)

Thiago Silva
10 min readMay 5, 2020

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Lembro quando ouvi o Gehenna pela primeira vez e de como a sonoridade da banda me impressionou. Eu já ouvia outras coisas além de hardcore, mas naquele momento era tudo muito bem marcado: Darkthrone era Darkthrone, Integrity era Integrity e assim por diante. Inclusive, foi obviamente por conta do Integrity e aquele papo de Holy Terror, estética errada, ocultismo, declarações polêmicas e a porra toda que acabei indo esbarrar no Gehenna.

O lance é que eu não estava preparado mesmo pro som que sairia das caixas quando dei play no Negotium Perambulans in Tenebris, primeiro material da banda que ouvi: definitivamente era hardcore, a raiva e a agressividade sem firulas lá estavam, mas o vocal tinha uma ferocidade que se aproximava e muito do black metal que cada vez mais me chamava atenção naqueles tempos. No decorrer das faixas, esse mesmo toque de maldade aparecia nos riffs e no clima de merda que permeava o disco inteiro. O negócio misturava tudo que mais me chamava atenção dentro da música naquela época, junto de uma atitude meio arrogante e filho da puta que só deixava tudo mais charmoso, meio edgy como a galera gosta de dizer hoje. Pirei, dei um jeito de conseguir os discos quando o dólar ainda era praticável e sigo pirando até hoje. Analisando os elementos separados, o Gehenna pode não parecer grandes coisas, ainda mais depois que todo mundo do hardcore parece ter passado a dar mais valor no famigerado ~metal extremo~, mas a soma das suas partes, pra mim, ainda soa feroz e único como da primeira vez que os ouvi.

Tive a oportunidade de conversar com o Mike “Cheese” Apokalypse lá por 2016 (?), quando colaborava com entrevistas e textos pro finado Intervalo Banger. Como essa entrevista não existe mais em lugar nenhum e é a única em português com a banda, nada mais justo que republicá-la em vez de deixar mofando nos confins do meu HD.

publicada originalmente no Intervalo Banger, não faço a menor ideia quando

foto de Mike Pessaro
  1. O Gehenna surgiu numa época em que a maioria das bandas de hardcore adotavam uma imagem positive/viraram Krishna, você poderia falar um pouco sobre isso? Sobre os primeiros anos do Gehenna e como diabos vocês conseguiram ser tão mal-interpretados com o passar dos anos.

No começo dos anos 90, as pessoas estavam confusas. Com fatores como o falso boom econômico após 12 anos do plano financeiro de Ronald Reagan, o fim da Guerra Fria, o computador pessoal se tornando um item doméstico comum e um presidente que deveria estar no Huey Lewins and The News, a música tava meio que FODIDA, havia se tornando um prisma, que dobrava a luz e mudava suas cores, em vez de agir como um espelho, refletindo imagens da vida.

Era uma época em que a percepção de realidade da maioria das pessoas era tão distorcida que ninguém mais sabia como ter raiva ou lutar mais. Não havia munição em suas armas. Então todos os panacas deixaram suas armas de lado e resolveram virar robôs, entende? Grandes gravadoras e selos foderam com a tal da música “underground”. Artistas viraram escravos da noção de popularidade e fazer amizades com aqueles que queriam transformá-los numa massa homogênea. Dinheiro alimentava os mentirosos que se gabavam de toda aquela merda religiosa propagandista e uns empolgados que queriam ganhar alguma reputação para além de suas aulas de teatro no ensino médio.

Nossos planos eram outros.

Pegamos nossas armas, mesmo descarregadas, e continuamos usando-as pra atingir o que queríamos. Fomos encurralados e não tínhamos outra escolha a não ser sair à coronhadas até conseguirmos algumas balas e começar um tiroteio de verdade. Cê entende?

Isto é como, quando e porque o GEHENNA se formou. Não queríamos amigos nem fama; por isso não há fotos da banda em nossos discos. Ao menos não como uma espécie de propaganda babaca pra algum selo de bosta cheio de bandas que odiamos. Por isso lançamos tudo nós mesmos ou através de amigos.

Muitos acreditam que a gente criou essa mística toda em volta do que somos e vou te dizer que isso não tinha como estar mais distante da verdade. Fomos criados assim enquanto indivíduos, não tivemos alternativas. A besta de sete cabeças chamada GEHENNA nos escolheu pra destruir a humanidade e promover o final deste mundo.

2 . O Gehenna, mesmo sem querer, esteve na margem da infame cena “Holy Terror”. Como você lida com o termo atualmente? Qual sua opinião sobre as bandas que tentam emular o espírito daquela época? Os moleques de agora parecem fetichizar LaVey, Manson e iconografia ocultista só porque é legal e tal.

Há muito pra se falar, mas não tanto pra se dizer. Um escritor qualquer se referiu à gente assim. O termo “Holy Terror” se aplica? Sim, talvez. Fomos deuses e mártires do conceito de reconstruir através da destruição e muito provavelmente isso é pavoroso pra maioria do mundo ocidental simplesmente porque não se encaixa nas crenças judaico-cristãs da maioria das pessoas.

Se este termo funciona pra muitas outras bandas? Não. Não mesmo. Não se trata de um som específico ou estilo, nem mesmo deveria funcion ar como marketing. Não dá pra simplesmente se tornar parte da coisa: ou você faz parte dela desde sempre ou não tem jeito. Se O Velho te bota nesse esquema e como tudo funciona, talvez você seja parte disso tudo. Se tu sai usando um símbolo na tua jaqueta que tu não entende, então muito provavelmente nunca será.

Cê tem que ter isso em mente ao ouvir O Lobo… Tua liberdade tá na linha e liberdade não é um lance barato ou fácil de se conseguir. Ao fazer um pacto com a noite, você vira alvo do inimigo e as linhas entre artista e criminoso tendem a se borrar e isso rola muito rápido.

Não sei o que a molecada de hoje faz. Talvez o mesmo que a gente fazia, pegando aquilo que queríamos dos bestas que tão por aí. Mas nós sabemos que não é bem por aí. Devem viver no computador, acho. Não sei, passo meus dias meio que ignorando o que os outros fazem, querem ou pensam. Pessoas fetichizam outras vidas e atos porque elas mesmas nunca foram livres de verdade, nunca souberam ou saberão o que é necessário pra ser livre. O preço da liberdade é BEM alto.

Muitas vezes, liberdade é não ter um lugar pra morar ou grana ou um trampo ou até algo pra comer. Porque liberdade não é baixar a cabeça pr’um deus ou mestre ou estado. É dar adeus pra tudo que tu tem e não esperar NADA em troca. Charlie não matou nenhuma daquelas pessoas. Ele foi condenado sem um julgamento justo por ser um de nós e nós somos parte dele também. Percebemos o que precisa ser feito pra ser livre. E é isso que mantém os cães atrás da gente.

você devia ouvir este disco

3. Ainda sobre “Holy Terror”, o termo foi cunhado por algum dos caras do Catharsis, não? Há alguma relação entre vocês e a CrimethInc atualmente? Alguma boa história sobre a turnê européia de tempos atrás?

Dingledine usou o termo pela primeira vez (Brian, vocalista do Catharsis). Nós e a CrimethInc não temos relação alguma. Nunca tivemos, pra te falar a verdade. Eles meio que precisavam da gente pra ganhar uma moralzinha nas ruas, saca? Ainda mais com todas aquelas bandas e livros que eles lançavam sobre a vida que NÓS levávamos enquanto eles tavam na escola.

A CrimethInc era um coletivo de estudantes. Só falatório e filosofia, nenhuma ação. Sobre a tour européia de 97: o ápice foi comer num restaurante judaico chamado Maoz lá em Amsterdã e olhe lá, hehe.

4 . Não é exatamente comum ver bandas de hardcore americanas misturando seu som com influências de black/death metal ou até mesmo crustpunk mais podre, que bandas influenciaram vocês ao longo dos anos?

Pra falar a verdade, parece que cada cuzão nos EUA corre atrás de copiar ou fazer música derivativa em vez um bagulho novo, levando a música à novos altos e baixos. Todo mundo curte essa idéia de soar como CHILDREN OF BODOM ou FLOORPUNCH. Quero mais é que se foda. As duas bandas são horrendas e são uma pilha de cocô de cachorro, sem um pingo de criatividade, sempre apelando pro mais baixo denominador comum. Odeio gente estúpida e prefiro ofender todo mundo em vez de fazer algo que possam gostar.

Sempre gostamos mais de punk e metal do que essas porcarias que todo mundo adora. Há uns nomes bem óbvios tipo DEAD BOYS, HELLHAMMER, G.G. ALLIN, ANGRY SAMOANS, BLACK FLAG, SODOM, The CHEIFS, BATHORY, G.I.S.M., DISCHARGE, KREATOR, STOOGES, VENOM, D.R.I., NAPALM DEATH, C.O.C., SARCOFAGO, POSSESSED, TERRORIZER, JUDGE, DESTRUCTION, INFEST, MOTÖRHEAD, BOLT THROWER, SUICIDAL TENDENCIES e por aí vai.

5 . O que você acha de selos que acabaram ficando grandes demais (Victory Records, por exemplo) e lançam só híbridos genéricos de hardcore/metal, não parece uma cena à parte? Como o GG Allin disse certa vez, não é hora de tornar tudo perigoso de novo?

O PERIGO é o ingrediente principal de qualquer forma válida de arte. Quando algo é feito para chamar a atenção das massas, perde toda sua força. Por essas e outras que lançamos nossos discos por conta própria ou em selos realmente independentes. Nossa mensagem sempre foi de rejeitar o mundo todo; negar tudo que você aprendeu como regra, desafiar as leis da sociedade. Quando tu se torna empregado de uma indústria que vai te tirar tua liberdade, você não é mais um artista livre.

Quando tem alguém no pé do teu ouvido te dizendo tudo o que fazer em todos os momentos, já era. Você é um escravo.

6 . Além do Gehenna, você tocou em outras bandas de som mais voltado pro metal como Sangraal e Gravehill, pode falar um pouco sobre isso? O material antigo do Gravehill é meio que uma aula de como black/death metal bestial deveria soar! Hehe

Todo membro do GEHENNA tocou ou ainda toca em trocentas bandas. A gente fez isso simplesmente porque sentia falta de bandas que gostaríamos de ouvir ou adquirir material. Lojas de discos vendiam discos cocozentos de metal, discos cocozentos de punk, discos cocozentos de rock, etc. Por isso resolvemos formar umas bandas diferentes do GEHENNA, mas ainda com o mesmo sentimento e mensagem. Mesmo com alguns membros diferentes, GEHENNA, THE DISCREET DOLL BAND, PENETRATIONS PANTHERS, DEVIL, WITCH-LORD, SANGRAAL e MOTHER FUCKING TITTY SUCKERS, etc etc etc são todas basicamente a mesma banda e seguem a mesma ideia. E essa ideia é “Foda-se todo mundo, foda-se o mundo.Vamo pirar e se foder junto também!”

A razão pela qual a demo do Gravehill “Practitioners of Fell Sorcery” soa daquele jeito é porque o Shane (que tocou guitarra ali) e eu não queríamos fazer nada bonitinho, fizemos um pacto (com drogas) em que decidimos mijar nas palavras de homens e deuses. Por isso ele é parte da nossa linhagem de sangue até a morte e está no GEHENNA, PENETRATION PANTHERS e tudo mais o que fizermos.

é tipo PMA ao contrário

7. Bem, como somos um site brasileiro, preciso te perguntar, tem alguma banda brasileira que te chamou a atenção? Quer dizer, obviamente cê curte um Sarcófago, mas há algo mais?

Eu conheci a cena sul-americana e da América Central através de trocas de fitas no final dos anos 80. Em 1988 ouvi o INRI pela primeira vez e minha vida mudou. Sempre considerarei estes monstros da cena da América do Sul e Central no mais alto patamar. Bandas como VULCANO, MUTILATOR, HOLOCAUSTO, R.D.P., ATOMIC AGGRESSOR, SEXTRASH, CHAKAL, DORSAL ATLANTICA, ANGEL BUTCHER, MYSTIFIER, etc tiveram um puta impacto na gente.

8. Você parece ter um certo desgosto por fazer shows e basicamente odiar qualquer um que vá neles. Na real, você parece estar cagando pra tudo, então, em algum momento já pensou em tornar o Gehenna em uma banda de estúdio apenas? Ou a idéia é ficar por aí e incomodar mesmo?

Não é nem que a gente não goste de fazer shows ou que odiamos o público, até porque o público nem entra na equação do que o GEHENNA faz. Nunca fizemos isso pelos outros. Não é para os outros ouvirem e gostarem. A música que fazemos é nossa e é como um feitiço para acelerar o fim de tudo. Conjuramos uma aura de drogas, morte, tortura e sofrimento.

Há momentos em que algum imbecil acha que tá no controle das coisas e que pode mandar em uma performance do GEHENNA. Aí o negócio fica feio. Quando estamos no palco, ele nos pertence. Quando entramos num recinto, ele é nosso. Rastejamos por estes becos há dezessete anos. Não temos intenção alguma de ver alguém chegar no lugar e achar que pode controlar em qualquer coisa que nos envolvamos. Sabemos como funciona. Esse rolê de drogas, roubos, venda de armas, assaltos e o caralho, conhecemos, fazemos e vivemos isso tudo. Então que esses moleques de merda acham que podem chegar e entender tudo… Nós não estamos brincando.

Sobre virar uma banda de estúdio… Nunca vai rolar. Escolhemos e organizamos nossos shows então não faria sentido parar com as apresentações.

9. Você provavelmente já respondeu isso buzilhão de vezes mas… Tem tantos Gehennas quanto Disgorges por aí. Alguma das bandas européias tentou reinvidicar o nome ou algo assim?

Negócio é o seguinte, só existe um GEHENNA e somos nós. Temos este nome desde o começo e vamos levá-lo conoscoaté o túmulo. Recebemos cartas em 97 desses cornos que usam vestido e tinham uma mina tocando teclado tempos atrás. Dissemos pra eles que éramos os donos desse nome por direito e que eles não passavam de uns fingidos do cacete. Também avisamos que estaríamos na Europa em breve e mandamos uma lista de datas, deixando bem claro que estávamos dispostos asair na porrada por isso. Ninguém apareceu. Nunca nem nos responderam. Nunca fizeram turnê por aqui (nota: nos EUA). Fizeram um monte de merda pra chegar perto do que fazemos aqui, mudaram até o logo pra lembrar mais o nosso.

Aqui fica um recadinho pra esses desgraçados: vocês podem tirar a maquiagem e os vestidos e tentarem parecer conosco, agir como a gente, até CHEIRAR que nem a gente, mas nunca serão como nós! São uns merdas, fingidos, falsos e panacas. Vocês são só uns músicos! Nós somos criminosos

10. Espaço livre pra comentários etc

Foda-se o mundo. Saudações ao o exército d’As Sete Coroas.

O Gehenna segue na ativa e você pode ouví-los no Bandcamp.

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Thiago Silva

Escrevo, traduzo, como, cozinho, reclamo, tenho bandas.